quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O que é o carnismo?

O carnismo é um sistema de crenças, normas e práticas que se caracteriza pela imposição do horror e do terror a corpos humanos e animais em nome da satisfação do apetite e da concupiscência, tendo por pedra de toque a persecução do lucro. Trata-se de um sistema pois as crenças, normas e práticas nele compreendidas não operam de maneira dissociada, mas interligada, de modo a reforçarem-se e justificarem-se recíproca e constantemente (as práticas reforçam e justificam as crenças; as normas reforçam e justificam as práticas e assim por diante).

O carnismo envolve crenças — ideias expressáveis em proposições definidas segundo uma lógica de mera afirmação (“O ser humano ocupa o topo da cadeira alimentar”), sem que por isso correspondam ao estado do conhecimento; normas — noções deônticas expressáveis em proposições de caráter prescritivo — em muitos casos, entalhadas no ordenamento jurídico (“Têm privilégio especial…sobre os produtos do abate, o credor por animais”) e práticas — métodos e técnicas de exploração, imposição de sofrimento, dor e angústia, modos de extermínio e utilização de corpos animais e aniquilação, ou inutilização, de corpos humanos. (“Inutilização”, porque o corpo humano é, para o carnismo, nada mais que “coisa útil”.)

Trata-se de um sistema de justificação, pois a cada passo e etapa do ciclo produtivo carnista, desde o nascimento humano e animal até o consumo de um corpo animal ou a exaustão de um corpo humano, uma justificativa é produzida (e mesmo que não evocada, fica no ar) por meio da incidência das normas, do reforço cíclico das crenças e da normalização das práticas carnistas.

Horror corresponde ao gesto repugnante (ou de consequências repugnantes) advindo da substituição da empatia pela apatia, mediante uma inversão ou reversão de papéis (de provedor a sugador ou usurpador; de curador, pai ou tutor, a algoz; de criador a explorador, mercador, assassino). Terror é o sentimento despertado em vítimas humanas e animais, que vai da exasperação à depressão, da revolta (ou impotência) ao choro (ou berros), da dignidade à resignação e submissão ao jugo carnista.

Corpos, para o carnismo, são essencialmente carne. O corpo é um corpo animal (humano ou não); não dizemos, de um vegetal, que possui corpo. Uma árvore não possui um corpo. “Carne” subentende os tecidos, órgãos, secreções (além de outras substâncias e estruturas orgânicas, seja na forma natural ou transformada, ou como restos ou sobras) que o carnismo busca extorquir e explorar, mas sobretudo a energia vital — a qual se extrai (isto é, aliena) pela força da tração, pela força da síntese orgânica (como nos testes ou na produção de componentes imunitários), pela exuberância (como em locais de entretenimento), etc. Entende o carnismo que a energia vital que grassa no animal trespassará ao humano; essa energia vital é lucro de ponta a ponta, desde o momento em que se manifesta na ciranda da reprodução humana e animal, até que se dissipa e regressa, como que por mágica, retornando ao ciclo. Toda transferência de energia vital, dentro do sistema carnista, constitui um evento lucrativo.

Um importante aspecto do carnismo é o cultural-propagandístico, pois para alimentar o ser humano é preciso primeiro alimentar as suas crenças. Logo, inventar pretensas necessidades cuja satisfação leva a outras necessidades (medicamentosas, terapêuticas, para recuperação da degradação física e mental) é método, técnica — portanto, prática carnista. A crença leva à prática e vice-versa.

Nem após milhares de anos tem o animal direito a repousar em paz, pois os restos decompostos de corpos animais que viveram em tempos remotos continuam sendo aproveitáveis em sua energia vital. É por isso que o carnismo busca, nas profundezas do solo, ainda que sob grande dificuldade, o óleo e o gás (ou, hidrocarbonetos fósseis) que provêm da decomposição de corpos animais e mantêm a sua energia vital — a qual continua sendo originária de um animal vivo e explorado, milhares de anos no futuro, por sua carne.

O corpo humano e sua energia vital são visados no sentido de uma exploração intermediária, com o intuito de que seja atingida a exploração final, do animal. Ele é explorado em sua cinética e saúde, inclusive mental, enquanto durar; pois o ofício do empregado na indústria da carne é o de — repetitiva, frenética e abarrotadamente — torturar, matar, desmembrar e despedaçar, e de várias formas manipular e/ou descartar frações e pedaços de corpos animais, o que é física e mentalmente degradante. Podemos enunciar desta forma: o ciclo da exploração de corpos por sua energia vital tem por patamar intermédio a exploração de um corpo humano e, final ou superior, a exploração de um corpo animal, esteja vivo ou morto — ainda que há milhares de anos. Para o carnismo, gente é carne e bicho é carne; e os corpos são exploráveis antes ou após a morte, conforme a conveniência.

Nessa folia gravitacional, uma exploração não sobrevive sem a outra, até porque a do humano é relativa (visto preservar-se parte de sua individualidade, dentro de regras como as do direito do trabalho), enquanto que a do animal é absoluta: na dialética entre o absoluto e o relativo consubstancia-se a dinâmica por meio da qual a produção do lucro ocorre no sistema carnista. Lucro nada mais do que é energia vital, e não há produção de energia a não ser no interior de um ciclo dialético.

Ora, pode-se afirmar que o vegetal também contém energia vital, e que também sua energia é importante para o humano. Mas, o vegetal não pode ser explorado, porque não possui um corpo explorável (isto é, não possui “carne”); sua vida é instrumental e não tem protagonismo anímico — ou senciência. Além disso, toda exploração começa por uma supressão de soberania, por uma negação de suficiência ou autossuficiência — ou pela atribuição de uma soberania simulada, como é aquela exercida no contrato individual de trabalho.

O vegetal não retira soberania, ele dá. O humano, que tira sua energia vital diretamente do vegetal por ele plantado, em regime comunitário e solidário, organicamente, não explora nem oprime, logo o ciclo do carnismo é interrompido e não há mais dialética entre absoluto e relativo. Isso não quer dizer que o trabalhador da indústria da carne, que decida se alimentar apenas de vegetais, tenha reavido a sua soberania, pois essa não pertence ao indivíduo, assim como a autossuficiência; ela só será possível quando nenhum trabalhador restar, que contribua com o ciclo dialético de transferência de energia vital que sustenta o sistema carnista.

O carnismo não é, portanto, um hábito ou costume, um defeito moral ou de caráter, por não se reportar a condutas individuais, mas generalizadas e sistemáticas. É a própria base mental e ideal, material e econômica de um sistema de produção que consome o humano e o animal, e que quanto mais consome o humano, mais consome o animal (e vice-versa). A figura do carnista não é, tampouco, a figura de um comedor de carne; o néscio que defende o carnismo porque gosta da carne, ou do leite, é como o proletário que defende político, pastor ou patrão. Ele não repara na mão invisível que rouba seu pão, e o alimenta com troços animais para que adoeça e necessite pagar cada vez mais, cada vez mais se endividar, até que morra servo. É tão alienado em sua consciência pelo carnismo, que se pode dizer que, não fosse o anelo que o carnismo aguça e atiça em seu organismo e alma, não poderia ser alienado. O carnista em si, portanto, nada mais é do que o capitalista, enxergado de outra forma.

Consistiria então a superação do carnismo na simples transição para uma indústria seriada de produtos de origem vegetal, com o uso de combustíveis não-fósseis, materiais sintéticos, não testados em animais e assim por diante? Claro que não, pois a vegetalização do sistema de produção carnista não importará a descarnização da economia. Isso, porque embora interrompida a dialética entre absoluto e relativo que constitui a lógica basilar do carnismo, a manutenção de seu sistema produtivo ainda que com insumos diferentes resultaria apenas num carnismo mitigado, relativizado, por imitação, restrito. E carnismo restrito ou por imitação ainda é carnismo.

A superação do carnismo pressupõe a construção de uma soberania alimentar de base vegetal por parte dos trabalhadores-consumidores, apoiados pelo agricultor familiar do cinturão verde, mediante a renegação do oligopólio da comida e tecnologias de facção laboratorial, o que passa pelo empoderamento da produção urbana de alimentos prontos/processados, de pequena escala e cunho artesanal ou semi-artesanal, com raiz local e predisposição ao acolhimento e à diversidade. Esse processo equivale à construção de uma emancipação por meio do alimento, que deve iniciar-se pela superação do medo do desabastecimento que caracteriza as atuais políticas de fome controlada e assegura a expansão continuada dos lucros do sistema carnista, e prosseguir com o desenvolvimento, compartilhamento, propagação, difusão e retenção de saberes culinários coletivos vegetais ou vegetalizados descolonizados, sobretudo os racializados, etnicizados, minoritários, periféricos, interseccionais, marginalizados.

Mas o carnismo não é apenas exploração — ou, não apenas a exploração direta que situa o corpo no âmago do processo explorativo. A escatologia carnista é essencial ao carnismo, pois sem suas incontáveis externalidades, como se diz, o carnismo não existiria. Um carro, andando velozmente, mata insetos, pássaros e outros animais, e pode matar humanos, e mais ainda um ônibus, avião, navio, caminhão, trem. O esgoto e o lixo, os poluentes atmosféricos, isto é, os resíduos da economia carnista constituem uma imposição intolerável para hordas de animais, levando-lhes doenças, quando não conduzindo-os à morte ou extinção. Assim, devemos à definição inicial acrescentar que o carnismo é o carnismo e sua escatologia, a qual desempenha uma função essencial para viabilizar a exploração carnista, pois dá vazão às substâncias e energias exauridas e abre espaço para que substâncias e energias dotadas de forma mercantil ocupem seu lugar, num ciclo sem fim.

Naturalmente, a vertente escatológica do carnismo é controlada pelo carnista-capitalista de maneira a minimizar a escatologia lateral ao negócio, com o aproveitamento do que seriam potenciais resíduos a título de subprodutos, e minimamente controlada após o consumo (pois do contrário não se arvoraria em externalidade) — de modo que, enquanto a escatologia lucrativa é internalizada, a prejudicial é externalizada e socioambientalizada. Embora não seja, diretamente, uma forma de exploração, alienação e apropriação, a escatologia carnista é explotativa e depletiva (seja por meio da escatologia excessiva, prolongada ou desastrosa), logo pode ser vista como uma forma indireta de exploração — sem que seja possível identificar, principalmente de antemão, quais os corpos explorados; logo, de um corpo coletivo, de uma bateria indistinta de corpos, que padecem porque o seu lar, natural e primordialmente ocupado, não mais lhes serve como tal.

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