quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Os três pilares do veganismo

O veganismo é, acima de tudo, uma verdade política. Assim como o carnismo, o veganismo também é um sistema de crenças, normas e práticas, muito embora, diferentemente do carnismo, seja um sistema em construção.1 Seria melhor descrevê-lo, por ora, como um sistema de pensamento: mas, naturalmente, o veganismo também é ação, e essa ação — a ação vegana, por assim dizer — é uma ação de luta e resistência.

Nem todos os que se afirmam veganos concebem o veganismo como um sistema de pensamento, nem a ação vegana como uma ação de luta e resistência. Esses não transicionaram, ainda, completamente, para além de uma concepção carnista de mundo. Compreender o veganismo como verdade política e a ação vegana como de luta e resistência, porém, é fundamental para participar na construção do veganismo como sistema — não apenas como pensar cotidiano, portanto, mas como um verdadeiro sistema capaz de se contrapor ao carnismo em toda a sua magnitude.

A luta do veganismo é contra o carnismo e a ação vegana opõe-se à perversidade do carnismo e à devastação por ele provocada. Esta, que se encontra em estágio avançado, é impulsionada pela subjugação cultural que o carnismo impõe à população. O carnismo é o maior e mais abjeto sistema escravocrata já inventado. Baseia-se na ideia ignóbil de que um prato sem carne é um prato sem valor; logo, como é o sistema carnista que produz a carne, ele escraviza as pessoas pela boca. “Um estômago sem carne é um estômago vazio”, dirá o carnista; por isso, a ideação e geração de um valor-carne2 se justifica pela essencialidade do próprio ato alimentar, de acordo com o ideal nutricional carnista. Conforme avança a ideia de que o ato alimentar apenas tem valia quando garante a obtenção de um valor-carne, todo ser humano passa a ser um escravo do carnismo (tido como sistema).

Como se sabe, a produção da carne é muito mais complexa e custosa do que a do vegetal, e deste último se apropria em copiosas quantidades. Enquanto uns poucos metros de terra que não seja infértil, quando bem lavrada e em havendo irrigação, bastam para alimentar uma família, o consumo diário de carne requer um sofisticado modo de produção que somente o capitalismo foi capaz de conceber. Não somente exigem-se vultosas quantidades de alimento para os rebanhos, mas áreas gigantescas, técnicas industriais, e um complexo de armazenamento, distribuição e comercialização cuja organização é especialidade do sistema carnista-capitalista.3

O veganismo deve partir, portanto, da desconstrução e negação do valor-carne, e portanto da recusa à escravidão carnista. Diz o veganismo ao carnista: “Sonegue, o quanto queira, o valor-carne, a fim de insuflar seu preço; você não me domina mais assim”. Logo, o veganismo é um instrumento (e movimento) de emancipação popular, não se limitando a uma postura, uma linha de ação comportamental, um novo olhar em direção à relação com o mundo animal e a natureza, mas partindo desse olhar para desconstruir o carnismo e atingir uma soberania alimentar que hoje constitui um privilégio — por meio do resgate do comunitarismo, da agricultura familiar e, inevitavelmente também, pela redistribuição de direitos de propriedade sobre a terra.

Mas, em quais pilares se apoia o veganismo? Como um movimento de luta e resistência, o veganismo afronta três modalidades de necropolítica, ou, dito de outra maneira, uma necropolítica de estrutura tripartite, dividida em: 1) animalicídio; 2) ecocídio e 3) nutricídio.

É um equívoco, portanto, pensar que o veganismo tenha por alvo combater o especismo: o combate ao especismo é tarefa dos movimentos pelos direitos dos animais; o veganismo é maior do que esses movimentos, porque visa à plena emancipação humana e não apenas à libertação animal (embora, também a esta, como é evidente). Mesmo assim, não há dúvida de que o maior estímulo para o surgimento e disseminação do veganismo foi o combate à crueldade para com os animais — e, portanto, ao especismo.

O animalicídio é o primeiro dos fenômenos combatidos pelo veganismo. Trata-se do extermínio organizado de animais mediante o uso de métodos industriais, de forma premeditada e insidiosa (p. ex.: o bovino sendo abatido por meio de uma laceração profunda na garganta, a qual atinge vasos de grosso calibre, a fim de que as últimas batidas do coração do animal sejam “aproveitadas” para drenar o máximo de sangue possível assim produzindo uma carne menos ensanguentada, isto é, a fim de separar o sangue, que é um subproduto, da carne, que é o produto principal). O extermínio de que se trata não é necessariamente direcionado à mercantilização do corpo do animal, podendo ser um extermínio simbólico, como ocorre nos circos, zoológicos e demais recintos de espetáculo onde animais são explorados para fins de exibição. Além do mais, possui uma face “silenciosa”, no que toca aos animais considerados como excedente de produção e também àqueles cujo corpo é entendido como um núcleo gerador de reações químicas — a estes últimos, podemos denominar animais-meios, por contraste aos animais-fins destinados ao consumo direto, mas o seu extermínio é tão certo e faz tão parte do animalicídio como necropolítica, quanto o dos demais.

O segundo deles é o ecocídio. Podemos defini-lo como a grosseira alteração da natureza, mediante a destruição da vida selvagem e nativa, de tal modo a provocar alterações sistêmicas nos micro e macroprocessos planetários a ponto de inviabilizar a vida local em determinados lugares, resultando em migrações ambientais e mortes humanas, em virtude do impacto desproporcional que causa a populações minoritárias e vulnerabilizadas. O ecocídio dialoga perfeitamente, tanto como o animalicídio, quanto com o nutricídio, pois os três cruzam caminhos nos métodos de destruição insidiosa, tais como o fadigamento, o esgotamento e o exaurimento — seja de elementos animados ou inanimados.

O terceiro é o nutricídio, fenômeno que podemos definir como a distribuição comercial massiva de alimentos prejudiciais à saúde humana, produzidos mediante processos laborais análogos à escravidão ou precarizados e/ou desgastantes — frequentemente, mediante a monetização da saúde do trabalhador. A distribuição comercial massiva de alimentos nocivos à saúde é um dos fundamentos do carnismo, pois com ela ele lucra em duas frentes (em ambos os casos, de má-fé): na primeira, com a venda de alimentos que satisfazem o paladar, mas destroem a saúde; na segunda, com a venda de terapias e medicamentos destinados a prolongar a sobrevida dos trabalhadores-consumidores, apenas para que possam continuar reproduzindo os mesmos alimentos e medicamentos e girando a ciranda de lucros do sistema carnista.

Esses três fenômenos unem-se sob a perspectiva necropolítica segundo a qual compete ao Estado, como mecanismo de coerção ordenada voltada contra as classes desfavorecidas, regular a perpetração, por parte da elite político-econômica de um país, do animalicídio, do ecocídio e do nutricídio. E nem nos países chamados desenvolvidos a população já despertou para isso! As formas como o Estado disciplina essa perpetração serão analisadas mais adiante. O que interessa para compreender a amplitude das transformações que o veganismo é capaz de introduzir na sociedade é identificar que a necropolítica tripartite a que nos referimos é uma política pública plurinacional hegemônica, e é onipresente nos países que adotaram alguma forma de organização capitalista. É difícil, até mesmo, dimensionar o tamanho da emancipação que o veganismo pode proporcionar: pois, ele tem o condão de interromper o círculo vicioso de animalicídio, ecocídio e nutricídio ao qual estão atados, hoje em dia, pelo menos três quartos dos seres humanos.

É evidente que essa luta não será completa enquanto a oposição não for total e eficaz a todas as manifestações do valor-carne, sejam primárias, secundárias ou terciárias. Por manifestações primárias do valor-carne, devemos entender a carne em si e seus derivados, pois são esses produtos que, de fato, constituem o mais nítido arrimo sobre o qual o carnismo se apoia; secundárias, os demais produtos de origem animal, tais como secreções, peles e outros tecidos, órgãos e estruturas corporais, além de outras formas de aproveitamento da energia vital e metabólica dos animais, inclusive de sua aparência e movimento; terciárias, as manifestações miméticas, isto é, os produtos que, convenientemente, mimetizam os produtos carnistas típicos a fim de se contagiar com o valor-carne, pretendendo-se substitutos mercadológicos para as suas manifestações primárias e/ou secundárias.

Mas, quem se insurge contra o carnismo? Quem sustenta pilares de que falamos? Essa é uma pergunta fundamental, pois o veganismo mostra uma feição estrutural muito reveladora quanto ao despertar para a conexão entre animalicídio, ecocídio e nutricídio, e quanto aos porquês desse despertar.

Basta lançar um olhar atento ao movimento vegano para constatar que, embora dele participem homens, trata-se de um movimento liderado por mulheres. De fato, isso não deveria surpreender. O especismo e o carnismo são criações do patriarcado, e é mesmo muito difícil de crer que, numa sociedade liderada por mulheres, a crueldade e a apatia fossem eleitas como valores fundantes e dirigentes da organização social. Mas é justamente isso que o carnismo faz: o patriarcado é um sistema fundado na opressão e a opressão especista é apenas a protuberância manifesta da covardia generalizada do patriarcado projetada sobre o universo dos animais não humanos, objetificando-os e inserindo-os numa hierarquia cujo topo é ocupado pelo macho humano, sobretudo branco (o supremo abusador de tudo e todos).

As mulheres foram responsáveis por observar a ligação entre o animalicídio e o ecocídio, bem como entre o primeiro e o nutricídio. São elas, aliás, as mais afetadas pelos males do carnismo. Foram, ainda, responsáveis por constatar que o carnismo é, em sua essência, um fenômeno sexista e patriarcal; e a partir dessa constatação, fica mais fácil compreender que se trata de uma manifestação do patriarcalismo, e que portanto o veganismo é um embate, sobretudo, em face da mentalidade patriarcal.

A tríplice visão, desenvolvida por mulheres, que conecta os animais, a natureza e a alimentação constitui a base da formação conceitual do veganismo (nesse sentido, é irrelevante que a gênese do termo “vegan” tenha sido atribuída a um homem). Por isso, é que se veem inúmeras mulheres, especialmente nas modalidades de ação coletiva (aliás, a ação individual não é, mesmo, capaz de fazer enfrentamento coeso e sistêmico ao carnismo), brandindo o estandarte do veganismo contra o animalicídio, ecocídio e nutricídio — às vezes, de forma agregada, às vezes separadamente.

Além do mais, percebe-se, também lançando-se um olhar atento ao movimento vegano, que são as mulheres que detém o mapa para a saída do labirinto em que se meteu a humanidade ao tolerar o avanço do capitalismo, tão essencialmente conectado ao sistema de produção carnista. Isso, porque são mulheres que, em regra, desenvolvem, dominam e disseminam tecnologias alimentares capazes de pavimentar a rota de escape de uma economia baseada no valor-carne.

Tais tecnologias são erigidas em conhecimentos livremente construídos, compartilhados e difundidos, em contraste com o fetiche do segredo industrial, tão patriarcal quanto caro ao carnismo. Este não poderia existir sem as técnicas de plantio, cultivo e transformação que permitem atingir os níveis mórbidos de produtividade requeridos pelo sistema carnista a fim de abastecer o mercado consumidor de alimentos e tantos outros produtos.

Fertilizantes e pesticidas, cultígenos, fármacos, máquinas e equipamentos, técnicas de processamento e ultraprocessamento de alimentos em escala industrial, assim como substâncias artificiais utilizadas em medicamentos, produtos de higiene e beleza e vestuário e também nos alimentos (cujo desenvolvimento passa, via de regra, por numerosos testes em animais) constituem exemplos de bens essenciais ao sistema carnista. Por essa razão, o veganismo também se arvora em frente de combate ao classismo, o qual se assenta na apropriação exclusivista do conhecimento tecnológico por meio da proteção às inovações decorrentes da autopoiese capitalista.

Logo, para além da formulação intelectual, a estrutura propriamente feminocêntrica do veganismo favorece uma ruptura sistêmica com a machocracia carnista, a partir da denúcia e do combate às relações escusas do carnismo com a maculinidade tóxica e o machismo estrutural. O veganismo pode vir a se tornar o grande instrumento dessa ruptura, a qual (venha como, e quando, vier) constituirá o mais significativo evento histórico de nossa época; mas, ela somente se tornará plena quando consolidada a gestão das sociedades políticas com fulcro numa feminocracia vegetocêntrica, momento a partir do qual se poderá falar na superação da predatoriedade inerente ao sistema patriarcal e capitalista.


1 Podemos opor carnismo e veganismo, como sistemas, dizendo que, se por um lado o carnismo é uma programação mental, o veganismo é uma contraprogramação mental.


2 O valor-carne é, intrisencamente, caracterizado por uma prevalência do valor de troca sobre o de uso, como ocorre com todas as mercadorias nocivas à saúde e/ou ao meio ambiente, tendo em vista que o uso associado ao valor-carne produz, na verdade, um antivalor que tende a destruir o próprio utente ou inviabilizar o seu modo de vida.


3 A epítome do carnismo-capitalismo é o proprietário de terras que nela mantém meia-dúzia de trabalhadores muito bem condicionados, armados até os dentes, prontos para expulsar a bala, até mesmo, seus próprios parentes, se estes vierem a reivindicar um pedaço de terra. Esse, no Brasil, é o denominado “ruralista”.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

O que é o carnismo?

O carnismo é um sistema de crenças, normas e práticas que se caracteriza pela imposição do horror e do terror a corpos humanos e animais em nome da satisfação do apetite e da concupiscência, tendo por pedra de toque a persecução do lucro. Trata-se de um sistema pois as crenças, normas e práticas nele compreendidas não operam de maneira dissociada, mas interligada, de modo a reforçarem-se e justificarem-se recíproca e constantemente (as práticas reforçam e justificam as crenças; as normas reforçam e justificam as práticas e assim por diante).

O carnismo envolve crenças — ideias expressáveis em proposições definidas segundo uma lógica de mera afirmação (“O ser humano ocupa o topo da cadeira alimentar”), sem que por isso correspondam ao estado do conhecimento; normas — noções deônticas expressáveis em proposições de caráter prescritivo — em muitos casos, entalhadas no ordenamento jurídico (“Têm privilégio especial…sobre os produtos do abate, o credor por animais”) e práticas — métodos e técnicas de exploração, imposição de sofrimento, dor e angústia, modos de extermínio e utilização de corpos animais e aniquilação, ou inutilização, de corpos humanos. (“Inutilização”, porque o corpo humano é, para o carnismo, nada mais que “coisa útil”.)

Trata-se de um sistema de justificação, pois a cada passo e etapa do ciclo produtivo carnista, desde o nascimento humano e animal até o consumo de um corpo animal ou a exaustão de um corpo humano, uma justificativa é produzida (e mesmo que não evocada, fica no ar) por meio da incidência das normas, do reforço cíclico das crenças e da normalização das práticas carnistas.

Horror corresponde ao gesto repugnante (ou de consequências repugnantes) advindo da substituição da empatia pela apatia, mediante uma inversão ou reversão de papéis (de provedor a sugador ou usurpador; de curador, pai ou tutor, a algoz; de criador a explorador, mercador, assassino). Terror é o sentimento despertado em vítimas humanas e animais, que vai da exasperação à depressão, da revolta (ou impotência) ao choro (ou berros), da dignidade à resignação e submissão ao jugo carnista.

Corpos, para o carnismo, são essencialmente carne. O corpo é um corpo animal (humano ou não); não dizemos, de um vegetal, que possui corpo. Uma árvore não possui um corpo. “Carne” subentende os tecidos, órgãos, secreções (além de outras substâncias e estruturas orgânicas, seja na forma natural ou transformada, ou como restos ou sobras) que o carnismo busca extorquir e explorar, mas sobretudo a energia vital — a qual se extrai (isto é, aliena) pela força da tração, pela força da síntese orgânica (como nos testes ou na produção de componentes imunitários), pela exuberância (como em locais de entretenimento), etc. Entende o carnismo que a energia vital que grassa no animal trespassará ao humano; essa energia vital é lucro de ponta a ponta, desde o momento em que se manifesta na ciranda da reprodução humana e animal, até que se dissipa e regressa, como que por mágica, retornando ao ciclo. Toda transferência de energia vital, dentro do sistema carnista, constitui um evento lucrativo.

Um importante aspecto do carnismo é o cultural-propagandístico, pois para alimentar o ser humano é preciso primeiro alimentar as suas crenças. Logo, inventar pretensas necessidades cuja satisfação leva a outras necessidades (medicamentosas, terapêuticas, para recuperação da degradação física e mental) é método, técnica — portanto, prática carnista. A crença leva à prática e vice-versa.

Nem após milhares de anos tem o animal direito a repousar em paz, pois os restos decompostos de corpos animais que viveram em tempos remotos continuam sendo aproveitáveis em sua energia vital. É por isso que o carnismo busca, nas profundezas do solo, ainda que sob grande dificuldade, o óleo e o gás (ou, hidrocarbonetos fósseis) que provêm da decomposição de corpos animais e mantêm a sua energia vital — a qual continua sendo originária de um animal vivo e explorado, milhares de anos no futuro, por sua carne.

O corpo humano e sua energia vital são visados no sentido de uma exploração intermediária, com o intuito de que seja atingida a exploração final, do animal. Ele é explorado em sua cinética e saúde, inclusive mental, enquanto durar; pois o ofício do empregado na indústria da carne é o de — repetitiva, frenética e abarrotadamente — torturar, matar, desmembrar e despedaçar, e de várias formas manipular e/ou descartar frações e pedaços de corpos animais, o que é física e mentalmente degradante. Podemos enunciar desta forma: o ciclo da exploração de corpos por sua energia vital tem por patamar intermédio a exploração de um corpo humano e, final ou superior, a exploração de um corpo animal, esteja vivo ou morto — ainda que há milhares de anos. Para o carnismo, gente é carne e bicho é carne; e os corpos são exploráveis antes ou após a morte, conforme a conveniência.

Nessa folia gravitacional, uma exploração não sobrevive sem a outra, até porque a do humano é relativa (visto preservar-se parte de sua individualidade, dentro de regras como as do direito do trabalho), enquanto que a do animal é absoluta: na dialética entre o absoluto e o relativo consubstancia-se a dinâmica por meio da qual a produção do lucro ocorre no sistema carnista. Lucro nada mais do que é energia vital, e não há produção de energia a não ser no interior de um ciclo dialético.

Ora, pode-se afirmar que o vegetal também contém energia vital, e que também sua energia é importante para o humano. Mas, o vegetal não pode ser explorado, porque não possui um corpo explorável (isto é, não possui “carne”); sua vida é instrumental e não tem protagonismo anímico — ou senciência. Além disso, toda exploração começa por uma supressão de soberania, por uma negação de suficiência ou autossuficiência — ou pela atribuição de uma soberania simulada, como é aquela exercida no contrato individual de trabalho.

O vegetal não retira soberania, ele dá. O humano, que tira sua energia vital diretamente do vegetal por ele plantado, em regime comunitário e solidário, organicamente, não explora nem oprime, logo o ciclo do carnismo é interrompido e não há mais dialética entre absoluto e relativo. Isso não quer dizer que o trabalhador da indústria da carne, que decida se alimentar apenas de vegetais, tenha reavido a sua soberania, pois essa não pertence ao indivíduo, assim como a autossuficiência; ela só será possível quando nenhum trabalhador restar, que contribua com o ciclo dialético de transferência de energia vital que sustenta o sistema carnista.

O carnismo não é, portanto, um hábito ou costume, um defeito moral ou de caráter, por não se reportar a condutas individuais, mas generalizadas e sistemáticas. É a própria base mental e ideal, material e econômica de um sistema de produção que consome o humano e o animal, e que quanto mais consome o humano, mais consome o animal (e vice-versa). A figura do carnista não é, tampouco, a figura de um comedor de carne; o néscio que defende o carnismo porque gosta da carne, ou do leite, é como o proletário que defende político, pastor ou patrão. Ele não repara na mão invisível que rouba seu pão, e o alimenta com troços animais para que adoeça e necessite pagar cada vez mais, cada vez mais se endividar, até que morra servo. É tão alienado em sua consciência pelo carnismo, que se pode dizer que, não fosse o anelo que o carnismo aguça e atiça em seu organismo e alma, não poderia ser alienado. O carnista em si, portanto, nada mais é do que o capitalista, enxergado de outra forma.

Consistiria então a superação do carnismo na simples transição para uma indústria seriada de produtos de origem vegetal, com o uso de combustíveis não-fósseis, materiais sintéticos, não testados em animais e assim por diante? Claro que não, pois a vegetalização do sistema de produção carnista não importará a descarnização da economia. Isso, porque embora interrompida a dialética entre absoluto e relativo que constitui a lógica basilar do carnismo, a manutenção de seu sistema produtivo ainda que com insumos diferentes resultaria apenas num carnismo mitigado, relativizado, por imitação, restrito. E carnismo restrito ou por imitação ainda é carnismo.

A superação do carnismo pressupõe a construção de uma soberania alimentar de base vegetal por parte dos trabalhadores-consumidores, apoiados pelo agricultor familiar do cinturão verde, mediante a renegação do oligopólio da comida e tecnologias de facção laboratorial, o que passa pelo empoderamento da produção urbana de alimentos prontos/processados, de pequena escala e cunho artesanal ou semi-artesanal, com raiz local e predisposição ao acolhimento e à diversidade. Esse processo equivale à construção de uma emancipação por meio do alimento, que deve iniciar-se pela superação do medo do desabastecimento que caracteriza as atuais políticas de fome controlada e assegura a expansão continuada dos lucros do sistema carnista, e prosseguir com o desenvolvimento, compartilhamento, propagação, difusão e retenção de saberes culinários coletivos vegetais ou vegetalizados descolonizados, sobretudo os racializados, etnicizados, minoritários, periféricos, interseccionais, marginalizados.

Mas o carnismo não é apenas exploração — ou, não apenas a exploração direta que situa o corpo no âmago do processo explorativo. A escatologia carnista é essencial ao carnismo, pois sem suas incontáveis externalidades, como se diz, o carnismo não existiria. Um carro, andando velozmente, mata insetos, pássaros e outros animais, e pode matar humanos, e mais ainda um ônibus, avião, navio, caminhão, trem. O esgoto e o lixo, os poluentes atmosféricos, isto é, os resíduos da economia carnista constituem uma imposição intolerável para hordas de animais, levando-lhes doenças, quando não conduzindo-os à morte ou extinção. Assim, devemos à definição inicial acrescentar que o carnismo é o carnismo e sua escatologia, a qual desempenha uma função essencial para viabilizar a exploração carnista, pois dá vazão às substâncias e energias exauridas e abre espaço para que substâncias e energias dotadas de forma mercantil ocupem seu lugar, num ciclo sem fim.

Naturalmente, a vertente escatológica do carnismo é controlada pelo carnista-capitalista de maneira a minimizar a escatologia lateral ao negócio, com o aproveitamento do que seriam potenciais resíduos a título de subprodutos, e minimamente controlada após o consumo (pois do contrário não se arvoraria em externalidade) — de modo que, enquanto a escatologia lucrativa é internalizada, a prejudicial é externalizada e socioambientalizada. Embora não seja, diretamente, uma forma de exploração, alienação e apropriação, a escatologia carnista é explotativa e depletiva (seja por meio da escatologia excessiva, prolongada ou desastrosa), logo pode ser vista como uma forma indireta de exploração — sem que seja possível identificar, principalmente de antemão, quais os corpos explorados; logo, de um corpo coletivo, de uma bateria indistinta de corpos, que padecem porque o seu lar, natural e primordialmente ocupado, não mais lhes serve como tal.

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