O veganismo é, acima de tudo, uma verdade política. Assim como o carnismo, o veganismo também é um sistema de crenças, normas e práticas, muito embora, diferentemente do carnismo, seja um sistema em construção.1 Seria melhor descrevê-lo, por ora, como um sistema de pensamento: mas, naturalmente, o veganismo também é ação, e essa ação — a ação vegana, por assim dizer — é uma ação de luta e resistência.
Nem todos os que se afirmam veganos concebem o veganismo como um sistema de pensamento, nem a ação vegana como uma ação de luta e resistência. Esses não transicionaram, ainda, completamente, para além de uma concepção carnista de mundo. Compreender o veganismo como verdade política e a ação vegana como de luta e resistência, porém, é fundamental para participar na construção do veganismo como sistema — não apenas como pensar cotidiano, portanto, mas como um verdadeiro sistema capaz de se contrapor ao carnismo em toda a sua magnitude.
A luta do veganismo é contra o carnismo e a ação vegana opõe-se à perversidade do carnismo e à devastação por ele provocada. Esta, que se encontra em estágio avançado, é impulsionada pela subjugação cultural que o carnismo impõe à população. O carnismo é o maior e mais abjeto sistema escravocrata já inventado. Baseia-se na ideia ignóbil de que um prato sem carne é um prato sem valor; logo, como é o sistema carnista que produz a carne, ele escraviza as pessoas pela boca. “Um estômago sem carne é um estômago vazio”, dirá o carnista; por isso, a ideação e geração de um valor-carne2 se justifica pela essencialidade do próprio ato alimentar, de acordo com o ideal nutricional carnista. Conforme avança a ideia de que o ato alimentar apenas tem valia quando garante a obtenção de um valor-carne, todo ser humano passa a ser um escravo do carnismo (tido como sistema).
Como se sabe, a produção da carne é muito mais complexa e custosa do que a do vegetal, e deste último se apropria em copiosas quantidades. Enquanto uns poucos metros de terra que não seja infértil, quando bem lavrada e em havendo irrigação, bastam para alimentar uma família, o consumo diário de carne requer um sofisticado modo de produção que somente o capitalismo foi capaz de conceber. Não somente exigem-se vultosas quantidades de alimento para os rebanhos, mas áreas gigantescas, técnicas industriais, e um complexo de armazenamento, distribuição e comercialização cuja organização é especialidade do sistema carnista-capitalista.3
O veganismo deve partir, portanto, da desconstrução e negação do valor-carne, e portanto da recusa à escravidão carnista. Diz o veganismo ao carnista: “Sonegue, o quanto queira, o valor-carne, a fim de insuflar seu preço; você não me domina mais assim”. Logo, o veganismo é um instrumento (e movimento) de emancipação popular, não se limitando a uma postura, uma linha de ação comportamental, um novo olhar em direção à relação com o mundo animal e a natureza, mas partindo desse olhar para desconstruir o carnismo e atingir uma soberania alimentar que hoje constitui um privilégio — por meio do resgate do comunitarismo, da agricultura familiar e, inevitavelmente também, pela redistribuição de direitos de propriedade sobre a terra.
Mas, em quais pilares se apoia o veganismo? Como um movimento de luta e resistência, o veganismo afronta três modalidades de necropolítica, ou, dito de outra maneira, uma necropolítica de estrutura tripartite, dividida em: 1) animalicídio; 2) ecocídio e 3) nutricídio.
É um equívoco, portanto, pensar que o veganismo tenha por alvo combater o especismo: o combate ao especismo é tarefa dos movimentos pelos direitos dos animais; o veganismo é maior do que esses movimentos, porque visa à plena emancipação humana e não apenas à libertação animal (embora, também a esta, como é evidente). Mesmo assim, não há dúvida de que o maior estímulo para o surgimento e disseminação do veganismo foi o combate à crueldade para com os animais — e, portanto, ao especismo.
O animalicídio é o primeiro dos fenômenos combatidos pelo veganismo. Trata-se do extermínio organizado de animais mediante o uso de métodos industriais, de forma premeditada e insidiosa (p. ex.: o bovino sendo abatido por meio de uma laceração profunda na garganta, a qual atinge vasos de grosso calibre, a fim de que as últimas batidas do coração do animal sejam “aproveitadas” para drenar o máximo de sangue possível assim produzindo uma carne menos ensanguentada, isto é, a fim de separar o sangue, que é um subproduto, da carne, que é o produto principal). O extermínio de que se trata não é necessariamente direcionado à mercantilização do corpo do animal, podendo ser um extermínio simbólico, como ocorre nos circos, zoológicos e demais recintos de espetáculo onde animais são explorados para fins de exibição. Além do mais, possui uma face “silenciosa”, no que toca aos animais considerados como excedente de produção e também àqueles cujo corpo é entendido como um núcleo gerador de reações químicas — a estes últimos, podemos denominar animais-meios, por contraste aos animais-fins destinados ao consumo direto, mas o seu extermínio é tão certo e faz tão parte do animalicídio como necropolítica, quanto o dos demais.
O segundo deles é o ecocídio. Podemos defini-lo como a grosseira alteração da natureza, mediante a destruição da vida selvagem e nativa, de tal modo a provocar alterações sistêmicas nos micro e macroprocessos planetários a ponto de inviabilizar a vida local em determinados lugares, resultando em migrações ambientais e mortes humanas, em virtude do impacto desproporcional que causa a populações minoritárias e vulnerabilizadas. O ecocídio dialoga perfeitamente, tanto como o animalicídio, quanto com o nutricídio, pois os três cruzam caminhos nos métodos de destruição insidiosa, tais como o fadigamento, o esgotamento e o exaurimento — seja de elementos animados ou inanimados.
O terceiro é o nutricídio, fenômeno que podemos definir como a distribuição comercial massiva de alimentos prejudiciais à saúde humana, produzidos mediante processos laborais análogos à escravidão ou precarizados e/ou desgastantes — frequentemente, mediante a monetização da saúde do trabalhador. A distribuição comercial massiva de alimentos nocivos à saúde é um dos fundamentos do carnismo, pois com ela ele lucra em duas frentes (em ambos os casos, de má-fé): na primeira, com a venda de alimentos que satisfazem o paladar, mas destroem a saúde; na segunda, com a venda de terapias e medicamentos destinados a prolongar a sobrevida dos trabalhadores-consumidores, apenas para que possam continuar reproduzindo os mesmos alimentos e medicamentos e girando a ciranda de lucros do sistema carnista.
Esses três fenômenos unem-se sob a perspectiva necropolítica segundo a qual compete ao Estado, como mecanismo de coerção ordenada voltada contra as classes desfavorecidas, regular a perpetração, por parte da elite político-econômica de um país, do animalicídio, do ecocídio e do nutricídio. E nem nos países chamados desenvolvidos a população já despertou para isso! As formas como o Estado disciplina essa perpetração serão analisadas mais adiante. O que interessa para compreender a amplitude das transformações que o veganismo é capaz de introduzir na sociedade é identificar que a necropolítica tripartite a que nos referimos é uma política pública plurinacional hegemônica, e é onipresente nos países que adotaram alguma forma de organização capitalista. É difícil, até mesmo, dimensionar o tamanho da emancipação que o veganismo pode proporcionar: pois, ele tem o condão de interromper o círculo vicioso de animalicídio, ecocídio e nutricídio ao qual estão atados, hoje em dia, pelo menos três quartos dos seres humanos.
É evidente que essa luta não será completa enquanto a oposição não for total e eficaz a todas as manifestações do valor-carne, sejam primárias, secundárias ou terciárias. Por manifestações primárias do valor-carne, devemos entender a carne em si e seus derivados, pois são esses produtos que, de fato, constituem o mais nítido arrimo sobre o qual o carnismo se apoia; secundárias, os demais produtos de origem animal, tais como secreções, peles e outros tecidos, órgãos e estruturas corporais, além de outras formas de aproveitamento da energia vital e metabólica dos animais, inclusive de sua aparência e movimento; terciárias, as manifestações miméticas, isto é, os produtos que, convenientemente, mimetizam os produtos carnistas típicos a fim de se contagiar com o valor-carne, pretendendo-se substitutos mercadológicos para as suas manifestações primárias e/ou secundárias.
Mas, quem se insurge contra o carnismo? Quem sustenta pilares de que falamos? Essa é uma pergunta fundamental, pois o veganismo mostra uma feição estrutural muito reveladora quanto ao despertar para a conexão entre animalicídio, ecocídio e nutricídio, e quanto aos porquês desse despertar.
Basta lançar um olhar atento ao movimento vegano para constatar que, embora dele participem homens, trata-se de um movimento liderado por mulheres. De fato, isso não deveria surpreender. O especismo e o carnismo são criações do patriarcado, e é mesmo muito difícil de crer que, numa sociedade liderada por mulheres, a crueldade e a apatia fossem eleitas como valores fundantes e dirigentes da organização social. Mas é justamente isso que o carnismo faz: o patriarcado é um sistema fundado na opressão e a opressão especista é apenas a protuberância manifesta da covardia generalizada do patriarcado projetada sobre o universo dos animais não humanos, objetificando-os e inserindo-os numa hierarquia cujo topo é ocupado pelo macho humano, sobretudo branco (o supremo abusador de tudo e todos).
As mulheres foram responsáveis por observar a ligação entre o animalicídio e o ecocídio, bem como entre o primeiro e o nutricídio. São elas, aliás, as mais afetadas pelos males do carnismo. Foram, ainda, responsáveis por constatar que o carnismo é, em sua essência, um fenômeno sexista e patriarcal; e a partir dessa constatação, fica mais fácil compreender que se trata de uma manifestação do patriarcalismo, e que portanto o veganismo é um embate, sobretudo, em face da mentalidade patriarcal.
A tríplice visão, desenvolvida por mulheres, que conecta os animais, a natureza e a alimentação constitui a base da formação conceitual do veganismo (nesse sentido, é irrelevante que a gênese do termo “vegan” tenha sido atribuída a um homem). Por isso, é que se veem inúmeras mulheres, especialmente nas modalidades de ação coletiva (aliás, a ação individual não é, mesmo, capaz de fazer enfrentamento coeso e sistêmico ao carnismo), brandindo o estandarte do veganismo contra o animalicídio, ecocídio e nutricídio — às vezes, de forma agregada, às vezes separadamente.
Além do mais, percebe-se, também lançando-se um olhar atento ao movimento vegano, que são as mulheres que detém o mapa para a saída do labirinto em que se meteu a humanidade ao tolerar o avanço do capitalismo, tão essencialmente conectado ao sistema de produção carnista. Isso, porque são mulheres que, em regra, desenvolvem, dominam e disseminam tecnologias alimentares capazes de pavimentar a rota de escape de uma economia baseada no valor-carne.
Tais tecnologias são erigidas em conhecimentos livremente construídos, compartilhados e difundidos, em contraste com o fetiche do segredo industrial, tão patriarcal quanto caro ao carnismo. Este não poderia existir sem as técnicas de plantio, cultivo e transformação que permitem atingir os níveis mórbidos de produtividade requeridos pelo sistema carnista a fim de abastecer o mercado consumidor de alimentos e tantos outros produtos.
Fertilizantes e pesticidas, cultígenos, fármacos, máquinas e equipamentos, técnicas de processamento e ultraprocessamento de alimentos em escala industrial, assim como substâncias artificiais utilizadas em medicamentos, produtos de higiene e beleza e vestuário e também nos alimentos (cujo desenvolvimento passa, via de regra, por numerosos testes em animais) constituem exemplos de bens essenciais ao sistema carnista. Por essa razão, o veganismo também se arvora em frente de combate ao classismo, o qual se assenta na apropriação exclusivista do conhecimento tecnológico por meio da proteção às inovações decorrentes da autopoiese capitalista.
Logo, para além da formulação intelectual, a estrutura propriamente feminocêntrica do veganismo favorece uma ruptura sistêmica com a machocracia carnista, a partir da denúcia e do combate às relações escusas do carnismo com a maculinidade tóxica e o machismo estrutural. O veganismo pode vir a se tornar o grande instrumento dessa ruptura, a qual (venha como, e quando, vier) constituirá o mais significativo evento histórico de nossa época; mas, ela somente se tornará plena quando consolidada a gestão das sociedades políticas com fulcro numa feminocracia vegetocêntrica, momento a partir do qual se poderá falar na superação da predatoriedade inerente ao sistema patriarcal e capitalista.
1 Podemos opor carnismo e veganismo, como sistemas, dizendo que, se por um lado o carnismo é uma programação mental, o veganismo é uma contraprogramação mental.↩
2 O valor-carne é, intrisencamente, caracterizado por uma prevalência do valor de troca sobre o de uso, como ocorre com todas as mercadorias nocivas à saúde e/ou ao meio ambiente, tendo em vista que o uso associado ao valor-carne produz, na verdade, um antivalor que tende a destruir o próprio utente ou inviabilizar o seu modo de vida.↩
3 A epítome do carnismo-capitalismo é o proprietário de terras que nela mantém meia-dúzia de trabalhadores muito bem condicionados, armados até os dentes, prontos para expulsar a bala, até mesmo, seus próprios parentes, se estes vierem a reivindicar um pedaço de terra. Esse, no Brasil, é o denominado “ruralista”.↩